Hoje Gabriela acordou assim, como quem não quer nada, como quem não espera nada além de viver.
Abriu os olhos e lá estava ele, seu sorriso matinal cumprimentando o teto como quem diz BOM DIA TETO, PRONTO PARA MAIS UM DIA? Mas ela não se levanta, ainda não, ainda pode curtir um pouco mais de preguiça, um pouco mais de tempo se espalhando no colchão. E ela se esparrama, se enrola, se esbalda, é tão confortável ali, mais um pouco daquilo não vai lhe atrasar tanto. Ela fica, e fica, e fica, e de um salto pula da cama e se espreguiça AAAHHHHH HOJE O DIA VAI SER BOM! Corre para o chuveiro, o chão gelado não impede seus pés. Ensaboa o corpo e enquanto lava seus cabelos canta uma canção boba que ouviu outro dia tocar no rádio, cantada não soube por quem "toda menina que enjoa da boneca é sinal de que o amor já chegou no coração..." VERDADE? SERÁ QUE SÓ TEREI UM AMOR QUANDO ENJOAR DAS MINHAS BONECAS? Gabriela continua a cantar, melhor não pensar mais em bobagens, mas, e o amor, e as bonecas, suas bonecas tão cuidadosamente penteadas e vestidas, que estão espalhadas por todo seu quarto, teria que se desfazer delas para encontrar o amor? Ela não sabia, Gabriela ainda não entendia. HOJE O DIA VAI SER BOM! Se trocou, comeu, ajeitou uma fita em seus cabelos e parou, se olhou no espelho ESTOU BONITA... MAS NEM TANTO ASSIM... SERÁ QUE DEUZINHO VAI GOSTAR? DEUZINHO GOSTA MAIS DE VERMELHO, MAS EU SÓ TENHO ESSA FITA AZUL... NÃO IMPORTA, HOJE O DIA VAI SER BOM! Gabriela beija o espelho e corre para rua, venta um pouco, mas ela não se incomoda, UM POUCO DE VENTO LHE ATIÇA OS CABELOS E CORA SEU ROSTO, LHE DÁ UM AR MAIS VIVO E SOLTO, FAZ PARTE DO CHARME, ela sempre repetia isso para si. Gabriela não gostava de prender os cabelos, era sempre uma briga quando sua mãe queria penteá-los MENINA DE CABELO SOLTO PARECE REBELDE, mas ela corria e fugia das escovas gritando POIS QUE EU SEJA REBELDE ENTÃO, PAPAI SEMPRE DISSE QUE EU TINHA O ESPÍRITO SOLTO... E a mãe gritava e Gabriela corria e sorria e gargalhava AH ESSA MENINA, UM DIA AINDA VAI SE MACHUCAR, sua mãe pensava e temia por sua bela filha que teimava em brincar com a vida, que adorava correr e dançar.
Ela seguia seu caminho sorridente HOJE O DIA VAI SER BOM, era o que não tirava da sua mente. As pessoas em volta sorriam e a cumprimentavam, todos gostavam daquela menina alegre que sacudia os cabelos por todos os lados, que só sabia correr no lugar de andar. "ALI, ALI ESTÁ ELE, DEUZINHO"... Gabriela parou, pendurado na árvore, de casaco vermelho e bermuda surrada, estava Deuzinho. Seu nome na verdade era Tadeu, seu vizinho de porta e amigo já há três verões. Ela que vivia solta com vento nos pés, naquele dia correu para o parque como fazia todas as manhãs, mas um galho inesperado cruzou seu caminho e ela caiu um tombo daqueles. Sem ninguém para ajudar, Gabriela agarrou seu joelho ralado e soprou, soprou, engolindo as lágrimas e esperando a dor passar. Levou um susto quando caiu do céu um menino, de cara suja de terra e sorriso largo bem na sua frente. "OI, SE MACHUCOU?"- mesmo assustada com a aparição repentina, sua curiosidade falou mais alto:
-QUEM É VOCÊ? VEIO DA ONDE?
-DESCULPA, NÃO QUERIA TE ASSUSTAR. ESTAVA NO MEU ESCONDERIJO, ALI NAQUELA ÁRVORE.
-NOSSA É ALTA...
-SIM! E AÍ, SE MACHUCOU?
-UM POUCO, ESTÁ DOENDO...
-DEIXA EU VER. - O menino se aproximou do joelho de Gabriela com cuidado, olhou seu machucado de perto - HUMMM ESTÁ BEM FEIO, ACHO QUE VAI FICAR MARCADO - Correu para o lago, rasgou um pedaço da sua camiseta e molhou na água fria, foi até Gabriela e limpou seu machucado. Depois rasgou mais um pedaço do pano de sua camisa e enrolou em seu joelho. - PRONTO, JÁ TÁ LIMPO, VOU FAZER UM CURATIVO COM ESSE PANO QUE É PRA NÃO SUJAR MAIS, TÁ?
Gabriela encarava o menino um pouco assustada e ao mesmo tempo admirada.
-PRONTO, ACHO QUE TÁ BOM! -Soprou seu machucado e deu três batidinhas - SEU JOELHO VAI FICAR NOVO, VOCÊ VAI VER!
-OBRIGADA... QUAL SEU NOME?
-TADEU. E O SEU?
-TADEU??? QUE ENGRAÇADO... O MEU É GABRIELA.
-POR QUE ENGRAÇADO?
-NUNCA CONHECI NENHUM TADEU.
-AGORA CONHECE! VAMOS, LEVANTA PRA VER ESSE JOELHO.
-OHHH, FICOU BOM, NEM ESTÁ DOENDO MAIS... VOCÊ É MESMO BOM NISSO, CUROU MEU JOELHO IGUAL DEUS!
-KKKKK CLARO QUE NÃO! E AINDA NÃO TÁ CURADO.
-AHHH MAS TÁ QUASE...RSRS TA BOM, ENTÃO VOCÊ É UM DEUZINHO... ISSO, TADEU, DEU, DEUZINHO!!! POSSO TE CHAMAR ASSIM?
-KKKK VOCÊ É MEIO MALUQUINHA, NÃO?! MAS PODE! E VOCÊ SERÁ A BIELA, GABI É MUITO BATIDO. SERÁ NOSSO NOME SECRETO!
-ESTÁ BEM! VAMOS SER AMIGOS?
-UÉ, PENSEI QUE A GENTE JÁ ERA!
Desde esse dia, Deuzinho e Biela não se largaram mais. Se encontravam todas as manhãs no parque para conversar, subir em cima de árvores e de vez em quando um fazia um curativo no outro. O tempo foi passando e eles cresceram, mas continuavam seus encontros.
-DEMOROU HOJE HEIN BIELA?
-TIVE QUE FUGIR DA MINHA MÃE, ELA QUERIA AMARRAR MEUS CABELOS.
-VOCÊ E ESSES SEUS CABELOS SOLTOS... E ENTÃO, QUAL BONECA TROUXE PARA NOSSA AVENTURA DE HOJE?
-A TRAÇA! É MINHA BONECA FAVORITA, SEMPRE FOI.
-ESTÁ MEIO VELHA, NÃO?
-NÃO IMPORTA, GOSTO DELA MESMO ASSIM!
-BIELA, EU TENHO UM PRESENTE PARA VOCÊ.
-PARA MIM? O QUE É?
-FECHE OS OLHOS... Gabriela fechou os olhos e esticou uma mão, sentiu algo macio cair entre seus dedos, uma fita comprida de cetim vermelho. Automaticamente pulou nos braços de Deuzinho.
-OBRIGADA PELA FITA DEUZINHO, EU ADOREI. - Agradecia enrolando as fitas nos dedos e envergonhada, fitava seus pés, que não paravam de se mexer.
-DE NADA... EU QUERIA TE DAR ALGO PARA VOCÊ SE LEMBRAR DE MIM.
-AH... MAS EU JÁ TENHO A CICATRIZ DO MACHUCADO QUE VOCÊ CUROU, LEMBRA? SEMPRE ME LEMBRO DE VOCÊ QUANDO OLHO PARA ELE.
-NÃO, EU QUERIA ALGO QUE VIESSE INTEIRAMENTE DE MIM!
-RSRS EU GOSTEI! OBRIGADA DEUZINHO
-BIELA... POSSO TE CONTAR UM SEGREDO?
-PODE... CONTA AGORA!
-EU GOSTO DE VOCÊ... EU GOSTO MUITO DE VOCÊ... - E Deuzinho se aproximou de Biela devagar, pois não queria assustá-la, colocou as mãos entre seus cabelos e a beijou. Um beijo terno, calmo, doce. A boneca caiu no chão, e com a fita ainda enrolada em seus dedos, Gabriela se deixou beijar e beijou, beijou Deuzinho com toda inexperiência que tinha. Achou que fazia cócegas seus lábios nos dele, era molhado, e quente também, não sabia direito o que fazer com sua língua, mas já tinha treinado com laranjas, "EM GERAL É SÓ BALANÇAR DE UM LADO PARA O OUTRO", lembrou dos conselhos de sua prima mais velha. Pela primeira vez os pés de Gabriela pararam de se mexer, seu coração estacou, parecia perder o ar, sentiu um arrepio subindo pela espinha - "TRAÇA, ONDE ESTÁ A TRAÇA? AH NÃO IMPORTA..."
E foi assim, com o gosto do beijo de Deuzinho ainda nos lábios, que Gabriela correu de volta para casa sem olhar para trás. Correu, correu, e gargalhou, parecia voar entre nuvens. Seus cabelos mais soltos e revoltos do que antes, sorriam com ela e voavam de uma lado para o outro. De uma vez arrancou a fita azul dos cabelos e a jogou no ar, tinha a fita de Deuzinho agora para a enfeitar, tinha o beijo de Deuzinho latejando em sua boca para lhe lembrar que ele gostava dela, Deuzinho gostava dela, Deuzinho gostava da Biela... Se deu conta de que deixara Traça para trás, sua boneca mais antiga, sua boneca preferida, sua boneca que tantas vezes lhe acompanhara nas aventuras com Deuzinho, sua boneca... E então parou, uma canção "toda menina que enjoa da boneca é sinal de que o amor já chegou no coração...", SERÁ? ERA ISSO O AMOR? VOAR MESMO ESTANDO PARADA? PERDER O AR E AINDA RESPIRAR? SENTIR O CORAÇÃO ACELERAR E PARAR DE BATER AO MESMO TEMPO? DEUZINHO? DEUZINHO FEZ O AMOR ENTRAR NO MEU CORAÇÃO? Gabriela andou para casa com a fita entre os dedos, um sorriso nos lábios e uma leveza no corpo. Ela não precisava mais correr, ela tinha acabado de encontrar, não sabia o que, só sabia que tinha. Chegou em casa, entrou no seu quarto, olhou em volta, tantas bonecas, jogou todas no chão, sentiu que não precisava mais de bonecas. Gabriela cresceu. Pulou então em sua cama e olhou para o teto, e enquanto brincava com a fita vermelha em seus dedos falou VIU TETO, EU NÃO DISSE QUE HOJE O DIA SERIA BOM!
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